Determinantes do comportamento alimentar (3)

Como vai caro leitor?

Esta é a terceira parte de uma série de publicações que se destinam a educar. A informação é hoje uma arma, que nos dá maior possibilidade de “lutar” contra o que está “mal” na nossa vida e na sociedade em si. Conhecer a etiologia da obesidade permite-nos “educar, prevenir e tratar”. 
   Mais uma vez, este é um texto longo e complexo, mas que vale a pena ler.

Determinantes do comportamento alimentar (parte 1)

Determinantes do comportamento alimentar (parte 2)

Obesidade, exterioridade, restrição cognitiva e desinibição alimentar

   Os sinais biológicos relacionados com a saciedade e com a regulação do balanço energético são decisivamente importantes. Contudo, existe uma série de outros fatores que, em último caso, influenciam as decisões voluntárias de “quando, quanto e o quê” se vai comer.
    Ao longo dos últimos 30 anos, três grandes teorias têm dominado o estudo dos aspetos cognitivos e comportamentais da escolha alimentar relacionados com a obesidade e com o controlo do peso.



(1 ) Exterioridade/ externalidade

   No final da década de 1960, Schachter e Rodin formularam a teoria da externalidade da obesidade. Isto é, postularam que, em comparação com os seus homólogos magros, tanto os ratos como os seres humanos obesos eram mais reativos a estímulos externos (tempo, presença e qualidade dos alimentos, efeitos situacionais, etc) e menos sensíveis aos sinais de fome/ saciedade. Assim, sugerem que a obesidade é talvez causada ou sustentada por uma suscetibilidade à sobrealimentação, num ambiente propício, em que os alimentos são agradáveis e de fácil acesso.
    Esta teoria tornou-se amplamente aceite, tendo sido a base para um grande número de estudos da obesidade: estes tenderam a confirmar o conceito original de exterioridade. Ainda assim, muitos não encontraram uma relação, demonstrando que esta é certamente mais complexa do que originalmente proposto. Ainda assim, com algumas novas considerações, a ideia básica da externalidade continua a ter mérito.
   As potenciais raízes para o desenvolvimento de um controlo do comportamento alimentar externo versus interno não são difíceis de definir. Com efeito, este é frequentemente encorajado pelos pais desde a infância, que muitas vezes usam um certo momento do dia ou situação para “forçar” a criança a comer quando não tem vontade ou, pelo contrário, impedindo a criança de comer quando tem fome.
   Considerando que os lactentes e as crianças têm uma boa auto regulação da ingestão de energia, esta vai diminuindo com a influência dos estímulos externos. Certamente, já lhe aconteceu comer de mais, até sem vontade,  e de seguida sentir-se culpado. Pois bem, é justamente devido a esse condicionamento de que não se deve deixar comida no prato (incutido pelas nossas mães e avós).    Para além disso, alguns estudos mostram que crianças mais pesadas, tendem a ter mães que “fazem mais dieta”, “têm mais impulsos alimentares” e “controlam menos a ingestão, perante uma refeição apetitosa”. Este facto demonstra que as mães são capazes de transmitir, desde cedo, as suas preocupações com o peso e a sua dificuldade de controlo da ingestão, à sua descendência. Associando-se, estas características parentais, a um maior ganho de peso durante a infância.
  Deste modo, a exterioridade parece não ser apenas um fator correlacionado com a obesidade, mas sim,  um fator de contribuição para a mesma! Tenha atenção aos condicionamentos que transmite aos seus filhos.



(2) Restrição cognitiva
    “Restrição alimentar cognitiva” é um termo usado na Psicologia que indica uma “tendência para inibir voluntariamente a ingestão de alimentos e comer menos do que o desejado” para tentar perder ou manter o peso.
    Por exemplo, a doença do comportamento alimentar “anorexia nervosa” configura um alto grau de restrição alimentar cognitiva, com um controlo extremamente rígido sobre o consumo de alimentos e sobre a ingestão calórica,  o que resulta num índice de massa corporal (IMC) muito abaixo dos valores saudáveis.

Por outro lado, alguns estudos transversais (estudos que identificam associações entre fenómenos, sem indicar causalidade) mostram que existe uma associação positiva entre restrição alimentar e IMC. Ou seja, pessoas com mais peso declaram graus de restrição cognitiva mais elevados. Esta aparente contradição pode ser explicada pelo facto de que pessoas com tendência à obesidade estão mais expostas à discriminação social contra a obesidade e tendem a ter um comportamento alimentar mais restritivo do que as pessoas que não têm tendência à obesidade. Ou seja, estas pessoas tendem a fazer dietas mais restritivas.    Atualmente, na nossa sociedade, a aparência física é um fator decisivo em muitas ocasiões. Contudo, ainda tende a ser mais importante para mulheres do que para homens, tanto que alguns estudos demonstram uma associação mais forte entre a obesidade e a restrição alimentar cognitiva em mulheres do que em homens.  Porém, é interessante verificar que diversos estudos não conseguiram mostrar relação entre a restrição alimentar cognitiva e a quantidade de calorias ingeridas. Como é de esperar, esta luta constante para “comer menos e perder peso” é infrutífera para a maioria das pessoas, consistindo num leque de tentativas vãs, que raramente persistem. Por outras palavras, as pessoas com excesso de peso fazem “mais dietas”, apresentam um grau mais elevado de restrição cognitiva, mas, frequentemente, não conseguem emagrecer.
    De facto, sabe-se que uma restrição alimentar intensa e continuada pode alterar o metabolismo,  promovendo uma resistência metabólica à perda de peso! Ou mesmo promovendo o aumento da tendência para ganhar peso. Por esse motivo, um padrão restritivo do comportamento alimentar está intimamente relacionado com o excesso de peso e obesidade.
Para além disso, tem-se demonstrado que um alto grau de restrição cognitiva se associa a episódios de “ingestão descontrolada”, especialmente quando há exposição a determinados fatores psicológicos (stress, depressão) ou ambientais (festas, banquetes, eventos sociais, uso de bebidas alcoólicas). Nestas situações é provável que pessoas com maior grau de restrição “comam demais”, comparativamente a pessoas com menor grau de restrição cognitiva.

Alguns estudos longitudinais (estudos em que um grupo de pessoas são acompanhadas ao longo do tempo) mostram que indivíduos obesos, que seguem uma dieta restritiva,  não só não perdem peso ou perdem de uma forma insignificante, como, por vezes, até ganham mais peso do que o inicial, principalmente as mulheres. Em contraponto, estes estudos indicam que indivíduos eutróficos (peso saudável) têm um risco menor de ganhar peso após uma dieta restritiva. Desta forma, pode concluir-se que uma dieta alimentar restritiva parece ser uma estratégia mais adequada no auxilio da manutenção e gestão do peso de pessoas com peso normal, isto é, na gestão de pequenas variações de peso, dentro do que é considerado um IMC
saudável.

     Esta incongruência (dietas restritivas são mais eficazes em indivíduos normoponderais) pode ser explicada pelo facto de que existem dois tipos de restrição cognitiva, que afetam o comportamento alimentar de formas distintas.

  • O controlo flexível está associado a uma menor ingestão energética, expectativas de perda de peso mais moderadas e realistas e atitudes menos drásticas quanto ao consumo de alimentos. 
  • O controlo rígido está associado a episódios de perda de controlo sobre o consumo de alimentos (compulsão alimentar), ganho de peso e, geralmente, relaciona-se com problemas psicológicos e ligados ao stress.

    Assim, sabe-se que nas alterações do comportamento alimentar, os efeitos nocivos da restrição cognitiva rígida são mediados pela desinibição. Isto é, indivíduos com uma restrição mais  rígida tendem a ganhar peso quando a restrição cognitiva é acompanhada de episódios de perda de controlo, como comer muito quando se está nervoso/ ansioso (alimentação ou fome emocional) e por episódios de compulsão alimentar.


(3) Desinibição alimentar

 
 “Desinibição alimentar” é um termo usado na Psicologia que indica: 
  • Um tendência para comer mais do que o necessário;
  • Comer em resposta a emoções negativas (como raiva, medo, angústia, stress);
  • Comer mais do que o normal em ocasiões sociais;
  • Não conseguir “resistir à tentação” de comer muito quando há grande variedade de alimentos ou quando há alimentos muito saborosos (restaurantes, banquetes).

A desinibição é um dos padrões alimentares relacionados com a obesidade. Exemplos típicos de perda do controlo sobre a ingestão alimentar são os episódios de compulsão, nos quais “se come demasiado, de forma descontrolada e  se
sente culpa após a ingestão”.
     Uma questão pertinente é qual provoca qual? Ou seja, um elevado índice de desinibição e/ou compulsão alimentar causa um aumento do grau de restrição alimentar cognitiva (autocontrolo alimentar) ou, pelo contrário, é uma elevada restrição cognitiva que, por si só, leva à desinibição e descontrolo alimentar? Pois bem, alguns estudos longitudinais mostram que o comportamento restritivo é uma forma de compensação do descontrolo, quando existem episódios de compulsão alimentar. Isto é: a restrição (rígida) parece ser um efeito secundário da desinibição.
Não obstante, estudos em pacientes submetidos a cirurgia bariátrica demonstram que houve uma redução significativa dos episódios de compulsão alimentar com a perda de peso, sugerindo que a desinibição seja uma consequência da restrição cognitiva.
Neste sentido, considerando a desinibição como um marcador de psicopatologia, pode-se considerar que o abandono do comportamento restritivo rígido, bem como a diminuição da componente psicológica relacionada com a obesidade, podem ter um papel fundamental no desaparecimento da compulsão alimentar e no regresso do controlo sobre a alimentação.
São vários os estudos clínicos e populacionais que obtêm uma relação inequívoca entre 
a desinibição e o excesso de peso/ obesidade. Sabe-se que, no geral, as pessoas obesas têm maior desinibição do que pessoas não obesas, sendo que em obesos, o índice de restrição é preditor do IMC, bem como da taxa de insucesso nas tentativas de perda ponderal. Porém, quando um elevado índice de desinibição está associado a um alto índice de restrição, essa relação é enfraquecida, sugerindo que a restrição pode ser um fator moderador do ganho de peso.

     Mais, indivíduos com alto índice de desinibição tendem a ser sedentários e, quando iniciam a prática regular de atividade física, tendem a aumentar consideravelmente o consumo de alimentos. De forma interessante, um estudo obteve uma associação positiva entre a preferência por doces, gorduras e álcool e um menor consumo de frutas, verduras e pães integrais, em indivíduos com maior índice de desinibição.
Em suma, altos índices de desinibição estão, claramente, relacionados com maior risco de desenvolver obesidade. A desinibição está associada a traços de personalidade contraproducentes à manutenção do peso, como alto neuroticismo, baixo consciencialismo e baixa extroversão. A desinibição também está associada a baixa autoestima, depressão, ansiedade e autodepreciação do corpo.
Neste contexto, a desinibição parece desempenhar um papel essencial entre “a pessoa e o ambiente”, tendo, na sua génese, múltiplos componentes fisiológicos e psicológicos.


 

 
   O comportamento alimentar parece ser um fator decisivo na etiologia do excesso de peso e obesidade. O seu estudo aprofundado tem sido cada vez mais valorizado no âmbito do tratamento da obesidade, enquanto doença do comportamento alimentar. 
   Existem alguns testes validados para a população portuguesa que analisam o grau de restrição cognitiva e desinibição, sendo estes aplicados e analisados em consulta.

   As variações do comportamento alimentar são normais, entre indivíduos e também na mesma pessoa. Ao longo do tempo, de acordo com as influencias ambientais, todos passamos por fases em que somos “mais restritivos” ou “mais desinibidos”. Não se alarme se isso não afeta negativamente o seu peso. Se afetar consulte um profissional de saúde que o ajude a ultrapassar e lidar com “o momento”.

   Estes são conceitos complexos para o cidadão comum, se calhar, pouco interessante para alguns. Contudo, é através da informação que se dá a formação e assim, se lida melhor com as situações.
   É fundamental que todos nós saibamos o que é e por que é “a obesidade, epidemia do séc. XXI”.